sábado, 18 de agosto de 2018

Cabaré e charme. A propósito de uma escultura de Gustav Oppel para a Rosenthal - Alemanha


Peça de porcelana moldada e relevada, de cor branca, com apontamentos a amarelo, laranja, ouro, preto e verde, figurando uma jovem mulher, de pé e em pose, envergando traje de cabaré: calções curtos a amarelo, casaco e chapéu alto. Cabelo à la garçonne. Assenta sobre pé circular escalonado debruado a ouro. No fundo da base, carimbo verde «Rosenthal»«B-Bavaria». Inscrito na pasta «11». A dourado uma assinatura ilegível, talvez do pintor.
Data: 1923

Dimensões: Alt. 23 cm


Cabaré e Alemanha de entre guerras parecem ser indissociáveis, ideia que a literatura, o teatro e o cinema ajudaram a cimentar.

Mais que a divine decadence da personagem Sally Bowles, do filme Cabaret (1972), baseado na obra homónima de Cristopher Isherwood, que a brilhante Liza Minelli interpreta no filme de Bob Fosse, ao vermos esta delicada figurinha de porcelana, e embora não estejamos perante a atracção fatal da Lola Lola que actua no decadente cabaré Anjo Azul (Der blaue Engel), interpretado pela não menos brilhante Marlene Dietrich, do filme de Josef von Sternberg, estreado em 1930, é dela que nos lembramos.

Embora mais liberta, reivindicando para si atributos de moda, de pose e de comportamentos até então masculinos, a mulher é ainda uma ameaça. Continua durante este período a encarnar o Mal. A atracção demoníaca exercida por actrizes e coristas, no palco e no ecrã (embora neste se reduzisse, para a grande maioria dos espectadores, a amor platónico e a devaneios oníricos) continua tão presente como durante a Belle Époque.

A Alemanha sente o tratado de paz de 1919 como uma injustiça. Apesar dos sacrifícios e da pesada perda de vidas, quer militares, quer civis, o país não tinha conhecido o horror das batalhas e da destruição dentro do seu território, e a população mantinha-se profundamente ligada à monarquia e sentia como estranha a nova república imposta.
Arruinada economicamente pelo conflito e pelas pesadíssimas indemnizações que era obrigada a pagar às potências vencedoras, mergulha na miséria. Paralelamente, franjas de ricos, novos-ricos e arrivistas consomem freneticamente as coisas boas que o dinheiro pode proporcionar. A festa, o desvario, vão constituir a fuga a uma realidade da qual não se vislumbrava saída.

A necessidade de esquecer as agruras passadas e presentes vai potenciar a criatividade artística e sumptuária. A indústria cerâmica acompanha os novos gostos e tendências, abastecendo e contribuindo para o escapismo angustiado de uma sociedade que vivia apenas para o dia-a-dia. A República de Weimar embrenha-se, assim, com uma intensidade na joie de vivre dos anos loucos que sucederam à Grande Guerra, desconhecida nos demais países activos no conflito, apesar da grande miséria que se abatera sobre a pequena burguesia e o operariado.


Quando a escultura intitulada «Charme» foi criada, por Gustav Oppel, para a fábrica alemã Rosenthal, nos inícios da década de 1920, era este o cenário. A situação arrastou-se até 1925, quando se dá o empréstimo americano, ano em que se inicia a acção do Anjo Azul, e a situação económica alemã melhora nos curtos anos que antecedem o crash da bolsa de Nova Iorque.

A escultura mostra uma elegante e charmosa criatura de um qualquer espectáculo musical de luxo, até porque se destinava a ser adquirida por uma clientela sofisticada e de posses.

Não é o caso do Anjo Azul, mas a indumentária de Lola Lola, apesar de mais pobre, aproxima-se da da escultura: o mesmo tipo de cartola, o mesmo género de sapatos, e a lingerie sob o curto vestido evoca os calções curtos. Traje de cena, para deslumbrar e seduzir, porque lá fora a vida é dura, mas dentro do cabaré tudo é vibrante de ritmo e de cor, de luz e de brilho e, sobretudo, de erotismo. O sexo acompanha o ritmo do jazz, e o frenesim de danças como o charleston. Estamos no apogeu do teatro musical e congéneres.


Na obscuridade teatral e difusa, repleta de fumo de cigarro, para as cabeças toldadas pelo álcool, todos os rostos são belos e há muitas carnações à vista. O encanto das actrizes e coristas ilude, assim, os sentidos e os sentimentos. Vive-se numa outra dimensão. E há espaços de espectáculo para todas as bolsas. Divine decadence.

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