Já que estamos em maré de cinzeiros divertidos da
Aleluia-Aveiro, hoje trazemos mais um. Novamente um pato mas desta vez de
tridimensionalidade assumida. Trata-se do modelo 761com a decoração «A» - a
mesma paleta de cores do pato anterior.
Data: c.
1955
Dimensões: alt. c. 10 cm x comp. c. 15 cm x larg. c.
11 cm
Cinzeiro
individual e não de partilha colectiva, é mais um brinquedo para diversão de
adultos fumadores e/ou donas de casa com sentido de humor. Talvez um escape
doméstico, uma fuga à aridez plúmbea para quem (sobre)viveu no Portugal de
então, sob um regime ditatorial pacóvio e provinciano mas de repressão eficaz
que sufocava tudo e todos. Por isso intrigam estas peças.
Que
quotidianos enfeitaram, que vidas partilharam, que alegrias trouxeram, que
deslumbramentos ou que aversões causaram? Estas e tantas outras perguntas.
Embora diversas
fábricas de cerâmica nacionais seguissem uma produção consentânea com o que por
essa Europa se fazia na década de 1950, em França, Itália ou Alemanha,
sobretudo, recorrendo muitas vezes à cópia descarada, a Aleluia-Aveiro foi, em
nossa opinião, como já o escrevemos algures neste blogue, a mais original e
criativa de todas elas. Se a maioria das formas encaixam nessa produção
internacional, roçando por vezes o plágio, a liberdade com que a paleta
cromática foi aplicada nesta fábrica deu-lhe uma identidade tão pessoal que as
suas peças são inconfundíveis.
Não será o
caso deste e do pato anterior, claro, mas entram aqui estas considerações porque
formas e cores, enquanto escapismo lúdico, fazem-nos pensar que terão permitido
gozar uma pequenina e estranha lufada de ar fresco. Uma alegria brincalhona na
seriedade do dia-a-dia de uma sociedade fechada e amorfa. Ainda estamos para
compreender como é que estes objectos entraram e se instalaram nesse mundo.
Parece-nos
claro que terá sido uma produção cerâmica que diríamos rarefeita no panorama da
fábrica Aleluia-Aveiro que, paralelamente, comercializava objectos mais
convencionais. Porém, havia um público que as consumia. E não seria só uma
elite mais esclarecida, como se poderia pensar, até porque seriam de custo relativamente
acessível, antes compradas como tique de contemporaneidade também por pessoas
simples, populares, que as introduziam no seio do lar. Como se integravam nos
ambientes conservadores e sem gosto definido levanta-nos alguma estranheza.
Todavia, a nossa vida profissional permitiu-nos ter um vislumbre dessa
realidade, pouco prazenteiro esclareça-se já, mas também a amostragem não é, de
todo, significativa, de como tais peças modernas da Aleluia-Aveiro se cruzaram
com essas vidas de pacatos e banais habitantes, pelo menos os da Lisboa onde
habitamos.
Nesse contexto,
cruzámo-nos, mais do que uma vez, com estas peças perdidas, como ET’s, em
ambientes “hostis”, abundantes de quinquilharia de feira e gosto duvidoso. Um
toque superficial de modernidade sem conteúdo.
Uma com o
modelo que apresentámos em 11/12/2011 e em 01/02/2013, mas com outra decoração,
estava em cima de um naperon numa cómoda
Queen Anne de fancaria, cheia de
areia e flores de plástico, entre objectos heteróclitos, velhos retratos de
família em molduras de plástico e caixas de comprimidos. Nada de gostos
sofisticados subjacentes, provocações pop assumidas, ou sequer um complemento
de outros objectos da mesma cronologia e gosto.
Uma outra
jarra igualmente freeform, de modelo
que não voltámos a ver, listada de amarelo, preto e branco,– que desperdício –
jazia, também ela cheia de areia e flores de plástico (parece ser uma
constante), sobre uma pequena mesa de apoio com tampo triangular de cantos
arredondados, revestido de fórmica, metade encarnado e resto em preto, com três
pernas à “Picasso”, também ela um anacronismo no acanhado espaço atulhado de
banalidades kitsch. Não tinha, tal como a mesa, qualquer viço. Sendo ambas
divertidas, não traziam qualquer alegria. Em ambos os casos funcionavam como
estranhas chamas coloridas na asfixia circundante, mas fora de cena, destoantes.
Terão sido
prendas de casamento de familiares e/ou amigos que, capazes de fugir à rotina
do já visto, assumiam que um casal jovem, acabado de casar, quereria ser
moderno? Teriam sido compradas pelas próprias donas de casa que num fugaz
momento de deslumbramento pelas novas formas não resistiram à tentação de as
comprar mas quedou-se por ali o rompante de loucura? Presente de um marido disposto
a abrir as portas da sua casa ao mundo contemporâneo?
Infelizmente
a circunstância profissional das visitas não nos permitiu esclarecer estas
questões.
Fosse qual
fosse a intenção ou a origem, o desapontamento do que vimos foi total. Nos anos
de chumbo do salazarismo dificilmente um casal popular ultrapassaria a
mediocridade quotidiana pois o acesso à informação e à cultura era praticamente
nulo e reservado a pequenos grupos sociais segregados e maioritariamente
segregadores (a televisão ainda não existia por cá e, quando passou a existir,
era tão cinzenta no preto e branco como a demais realidade), para mais num país
com um índice de analfabetismo escandaloso (a rondar os 50% em 1950 e os 40% em
1960).
Fantasistas,
brincalhonas e bem-dispostas (e hoje são para nós, colecionadores, um vício
pior que o tabaco) as criações da Aleluia-Aveiro permitem-nos não apagar a
memória, antes apaziguar as feridas do passado ao possibilitar-nos reflectir
sobre ele, porque não é melhor não pensar.
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